‘Escrever é exercício de coragem’, afirma Conceição Evaristo, Doutora Honoris Causa da UFMG
A uma plateia que a recebeu calorosamente, a escritora disse que a homenagem ajuda a preencher um vazio que Minas deixou em seu coração quando se mudou para o Rio de Janeiro

Em cerimônia realizada no auditório da Reitoria, na noite desta segunda-feira, 29, a UFMG concedeu o título de Doutora Honoris Causa à escritora Conceição Evaristo, uma das autoras mais influentes do movimento pós-modernista brasileiro. O título é outorgado em reconhecimento a personalidades que prestaram relevantes contribuições para a ciência, a tecnologia ou a cultura. Conceição Evaristo é a terceira mulher, a primeira negra, a receber a honraria da Universidade.
Conceição Evaristo publicou poesias, romances e contos, e também atuou como professora e pesquisadora na área de literatura comparada. Em seu discurso, bastante emocionada, a autora disse ser muito grata a todos que leem e estudam as suas obras, pois, somente assim, ela se sente realizada "no espaço das vitórias cotidianas". Com a voz embargada, Evaristo afirmou que Minas Gerais é um estado que sempre a “amanhece”. Em tom poético, ela contou que a concessão do título pela UFMG preenche um vazio que Minas deixou em seu peito quando, de maneira que considera precoce, ela se mudou para o Rio de Janeiro para trabalhar.
Minas que dói, se recupera e amanhece
“Enquanto a cidade de Belo Horizonte mudava a sua geografia e o seu espaço, mais eu mineirava e fazia da saudade da cidade uma esperança que eu não sabia onde guardar. Sou herdeira de um sentimento que amargou e amarga uma profunda ausência de algo que já se teve. Apesar dessa Minas que dói, há muito de Minas e de minha casa que vai se recuperando, de uma casa jamais esquecida e que eu jamais imaginaria que poderia se tornar uma casa que amanheceria todos os dias", disse ela, em um dos vários momentos em que foi aplaudida pela plateia.
A autora seguiu fazendo um paralelo entre o ato de amanhecer e os momentos em que ela, por diversos motivos, se sentiu mais próxima de sua terra natal. Conceição citou como “manhãs” os momentos em que suas obras foram selecionadas para os vestibulares da UFMG e da Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg), a época em que atuou como professora substituta na Universidade e o dia em que foi eleita para a cadeira 40 da Academia Mineira de Letras.
“Às vezes eu tenho a ideia de estar vivendo uma ficção, e a vida me fornece elementos para a ficção. Sou grata à vida, que tem me dado tanto. Escrever é um exercício de coragem, principalmente se a escrita passa pelas nossas experiências pessoais e pela apropriação da língua portuguesa. Ser reconhecida como escritora negra neste país tem um significado muito forte.”

Assinatura de um povo
Conceição Evaristo recorreu a seu personagem Luandi Vivêncio, irmão da protagonista da obra Ponciá Vivêncio, para destacar que a trajetória de qualquer pessoa nunca é feita sozinha. “Luandi sabia que não bastava escrever a sua letra e o seu nome, pois atrás de sua assinatura deveria haver a assinatura de todo um povo. Não tenho dúvida de que só cheguei aqui porque minha tia, passeando comigo quando eu era pequena, me contava muitas histórias. E foram as vozes de mulheres negras, como a minha tia, que despertaram em mim este estado de assuntar o mundo", explicou.
Em seu pronunciamento, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida afirmou que, em suas obras, Conceição Evaristo sempre trabalhou com uma memória que valoriza o coletivo, a negritude e a identidade do povo negro. Segundo a reitora, o legado africano e de resistência permeia todo o trabalho da autora, criadora do termo ‘escrevivência’. Trata-se de um neologismo que combina as palavras ‘escrever’ e ‘viver’, referindo-se a um tipo de escrita que emergiu das experiências de Conceição Evaristo como mulher negra e de sua coletividade.
“São muitas as lições que nossa homenageada nos ensina. Ela nos ensina algo que não podemos nunca esquecer, que do coletivo retiramos a força e a certeza de que não estamos sozinhos. Conceição mostra que, por meio do coletivo e do legado que valoriza a união e a solidariedade, conseguimos nos articular como pessoas, instituições e países”, disse.

Sandra acrescentou que Conceição sempre defendeu valores que são inestimáveis para a UFMG, como a democracia, a igualdade, a pluralidade, a diversidade, o respeito à diferença, aos direitos humanos e ao direito à educação. “A obra de Conceição Evaristo rompe com os paradigmas segmentados do pensamento dominante ao eleger o coletivo, a memória e a ancestralidade. Assim, ela estabelece os preceitos de um país mais justo, equânime, igualitário, soberano e livre. Conceição sempre fez a defesa dos direitos daqueles que historicamente não tinham direitos. O título de Doutora Honoris Causa reconhece a singularidade da trajetória de uma mulher que, no percurso de uma vida, engajou-se com o seu mundo e com o seu tempo, tornando-se protagonista de transformações.”

O narrativo transcende o biográfico
A iniciativa da homenagem à Conceição Evaristo partiu da Congregação da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. A professora Sandra Gualberto Bianchet, diretora da Fale, lembrou que a autora é a segunda homenageada com o título no campo das Letras – o primeiro foi o escritor português José Saramago, que se tornou Doutor Honoris Causa da UFMG em 1999.
Bianchet afirmou que a concessão do título a Evaristo se justifica por diversos motivos, entre os quais, a diretora destacou a atuação da escritora como professora universitária em instituições no Brasil e no exterior, o fato de ela ter atuado como professora substituta da Fale por dois semestres e o grande alcance internacional de sua obra.
Ser mulher e estar no mundo
A professora Constância Lima Duarte, também da Fale, acrescentou outros motivos que justificam a concessão do título a Conceição Evaristo, com ênfase nas características do estilo literário da homenageada. Duarte relembrou personagens marcantes das obras da autora, que sempre estiveram ligadas à ancestralidade, à afrobrasilidade, à discriminação racial e à desigualdade de gênero, revelando um projeto literário na construção de personagens e estruturação de enredos.
“Surge então a ‘escrevivência’, na qual Conceição trabalha questões relacionadas a ser mulher e a estar no mundo, fortalecendo a irmandade entre elas e marcando seu lugar de fala como mulher negra, feminista e oriunda de classes populares", disse.

Constância destacou que Conceição não apenas criou o termo ‘escrevivência’, mas foi uma grande adepta desse tipo de escrita ao deixar as suas narrativas transcenderem as suas vivências. “Faz parte da coerência e do projeto crítico social de Conceição Evaristo a confluência entre testemunho e ficção, de espaços líricos e intenção documental. A escola de samba carioca Império Serrano fará uma homenagem a Conceição Evaristo, com o samba-enredo Ponciá Evaristo Flor do Mulungu. Será apenas mais uma das homenagens tão merecidas à escritora”, ressaltou a professora.
A cerimônia de outorga do título à escritora foi transmitida para o auditório Nobre do CAD 1. Conceição teve recepção calorosa de pessoas de diferentes faixas etárias que começaram a chegar ao campus antes das 18h para garantir um lugar no auditório que ficaria lotado bem antes da solenidade começar.
Paciente, Conceição atendeu aos pedidos para se deixar fotografar com seus admiradores e autografou vários exemplares de seus livros. Vitória, uma jovem que aniversariava no dia da homenagem, foi uma delas. Esperta, ela fez essa indicação no livro e recebeu uma dedicação carinhosa da escritora com votos de “vida longa”. A garota se ajoelhou quando leu a dedicatória.

Trajetória
Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em 1946, em Belo Horizonte. De origem humilde, cresceu na periferia e teve sua mãe como principal incentivadora do hábito da leitura. Mudou-se para o Rio de Janeiro, na década de 1970, onde se graduou em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalhou como professora da rede pública municipal de ensino.
A escritora é mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com a dissertação Literatura negra: uma poética de nossa afrobrasilidade, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos. Nesse último trabalho, analisou as obras poéticas dos autores afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira, em confronto com a obra do angolano Agostinho Neto.
Ao longo de toda a sua vida, Conceição participou ativamente dos movimentos de valorização da cultura negra no Brasil. A autora estreou na literatura em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos negros. Escritora versátil, destacou-se por cultivar a poesia, a ficção e o ensaio, e teve obras publicadas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Em 2003, Conceição Evaristo publicou o romance Ponciá Vicêncio pela Editora Mazza. A obra ganhou muito destaque e foi selecionada para o vestibular da UFMG em 2008 e 2009. Com narrativa não linear marcada por seguidos cortes temporais, em que passado e presente se imbricam, Ponciá Vicêncio teve boa acolhida da crítica e do público, sendo traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007.
Em 2006, Conceição Evaristo publicou seu segundo romance, Becos da memória, em que trata, com o mesmo realismo poético presente no livro anterior, do drama de uma comunidade favelada, em processo de remoção – a história foi inspirada em suas vivências no Pindura Saia, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, onde morou até 1971. Mais uma vez, o protagonismo da ação coube à figura feminina símbolo de resistência à pobreza e à discriminação.
Dois anos depois, Conceição Evaristo publicou Poemas de recordação e outros movimentos, em que mantém sua linha de denúncia da condição social dos afrodescendentes, porém inscrita num tom de sensibilidade e ternura próprios de seu lirismo, que revela um minucioso trabalho com a linguagem poética.
Em 2011, a escritora lançou o volume de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, em que trabalhou o universo das relações de gênero num contexto social marcado pelo racismo e pelo sexismo. Em 2014, ela publicou Olhos d’água, livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria Contos e crônicas. Dois anos depois, ela lançaria mais um volume de ficção, o Histórias de leves enganos e parecenças.
Nos últimos anos, três de seus livros, que continuam recebendo novas edições no Brasil, foram traduzidos para o francês e publicados em Paris pela editora Anacaona. Em 2017, o Itaú Cultural de São Paulo realizou a mostra Ocupação Conceição Evaristo, contemplando aspectos da vida e da literatura da escritora. No contexto da exposição, foram produzidas as Cartas negras, retomando projeto de troca de correspondências entre escritoras negras iniciado nos anos 1990.
Em 2018, Conceição Evaristo recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra. Em 2023, publicou Macabea, flor de mulungu, conto em que dialoga com A hora da estrela, de Clarice Lispector. Também em 2023, a autora foi agraciada com o Prêmio Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira de Escritores (UBE). Em 8 de março de 2024, Conceição Evaristo passou a ocupar a cadeira de número 40 da Academia Mineira de Letras.

A honraria
A concessão do título de Doutor Honoris Cauisa pela UFMG teve início em 1928, um ano após a fundação da Universidade, com a homenagem ao jurista José Xavier Carvalho de Mendonça. Entre outros agraciados, estão o ex-presidente Juscelino Kubitschek, escolhido em 1960, o escritor José Saramago (1999), a física americana Mildred Spiewak Dresselhaus (2012) e a cantora lírica Maria Lúcia Godoy (2016).
Por diferentes motivos, a honraria não chegou a ser entregue ao poeta Carlos Drummond de Andrade, ao economista Celso Furtado, ao arquiteto Oscar Niemeyer e ao compositor e escritor Chico Buarque de Holanda. Além disso, em julho de 2022, o Conselho Universitário aprovou a outorga do Doutor Honoris Causa ao arquiteto e Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel e ao filósofo Daisaku Ikeda, ambos ativistas dos direitos humanos, mas as indicações perderam efeito, uma vez que os títulos não foram entregues em até um ano após a sua concessão, segundo estabelece o Regimento Geral da UFMG.
Em 29 de abril deste ano, o Conselho Universitário aprovou a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, que faleceria logo depois. A viúva de Mujica, a senadora uruguaia Lucía Topolansky, receberá a homenagem em nome do marido em sessão solene do Conselho a ser agendada.
O Regimento Geral da UFMG dispõe que o título de Doutor Honoris Causa pode ser outorgado em reconhecimento a personalidades que prestaram relevantes contribuições para a ciência, a tecnologia ou a cultura. A concessão do título depende de proposta fundamentada, subscrita por pelo menos cinco membros do Conselho Universitário ou da Congregação proponente e aprovada em escrutínio secreto pelo voto de, no mínimo, dois terços dos membros de ambos os colegiados.
